segunda-feira, 29 de junho de 2009

Teia de significados


Pôr-do-sol sobre o Rio Jutaí, na região da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Cujubim. Foto: Dida Sampaio/AE


Rios e cidades são batizados em tupi, mãe dos idiomas indígenas do Brasil


MANAUS - Os sonoros nomes dos rios amazônicos, com seus significados misteriosos para os leigos, são parte da mística da região. Numa preleção feita no dia 25 de janeiro de 1889, o jurista e jornalista João Mendes de Almeida, presidente da Sociedade dos Homens de Letras de São Paulo, decodificou esses nomes, revelando uma intrincada teia de significados em tupi – a mãe dos idiomas indígenas do Brasil.
Solimões – Çuri-mã – “Altos e baixos e voltas”, por suas ilhas, canais intermediários e braços Madeira – Mã-nd-yêrê – “Impedimentos e voltas”, alusão às muitas cachoeiras e voltas que dá Trombetas – Terõ-mb-etá – “Muitas tortuosidades”, por causa do seu labirinto de canais, que formam ilhas Tefé – Té-cê – “Saída errada”, por desaguar, após uma curva, num grande lago, em vez de no rio principal Javari – I-abari – “Rio difícil”, por causa das cachoeiras e saltos Içá – I-çái – “Rio espalhado”, pela formação de alagadiços e canais Jutaí – Y-y-itá-í – “Continuamente escorado”, por correr entre penedos e margens altas Juruá – Yurù-yà – “Boca rachada”, por desaguar em vários canais, além da boca principal Japurá – I-apoî-rá – “Desatado em alagadiços”, porque durante a enchente se comunica com outros rios, sobre as várzeas Coari – Quà-ri – “Com poço”, por causa do grande lago em sua foz Purus – Pú-rú – “Tem comunicações”, por causa dos braços que o ligam ao Madeira e ao Coari.

Fonte: Lourival Sant’Anna (O Estado de São Paulo)

Máquina de fazer chuva


Crepúsculo sobre o Rio Jutaí, na região da Reserva Cujubim, no Amazonas. Foto: Dida Sampaio/AE

Vista áerea do sinuoso Rio Juruá. Quanto menos floresta, menos água é devolvida à atmosfera. Foto: Dida Sampaio/AE

Vista aérea da floresta Amazônica. Bioma inteiro tem 6,6 milhões de quilômetros quadrados. Foto: Dida Sampaio/AE

O canoeiro Leopoldo Barbosa pesca em uma manhã gélida no Rio Bóia. Foto: Dida Sampaio/AE


Metade da umidade que entra do Atlântico pelo Norte do País é reciclada pela floresta. Foto: Dida Sampaio/AE

A umidade que transpira da floresta abastece de água outras áreas do País – e os impactos lá são sentidos aqui

MANAUS - É uma máquina de fazer chuva funcionando a todo vapor. Às 5 horas da manhã, o sol já surge sobre a Amazônia. Parece mergulhado em uma espessa nuvem de umidade que emana da floresta em direção à atmosfera. Do alto de uma torre de alumínio de 54 metros, erguida no meio da mata, ao norte de Manaus, o ecólogo Flávio Luizão, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), assiste a tudo com atenção. E o especialista, que já viu aquilo centenas de vezes, ainda se espanta com a quantidade de água.
Olhando do alto é possível ver como a floresta mexe com o clima. De toda a umidade que entra do Atlântico pelo Norte do País e que vira chuva sobre a Amazônia, só metade é drenada de volta ao mar, levada pelos rios. A outra metade é reciclada pela floresta, devolvida à atmosfera e exportada para outras regiões, segundo o especialista Enéas Salati, da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável. A maior parte é empurrada pelo vento em direção ao Centro-Oeste, Sudeste e Sul, ajudando a irrigar colheitas e abastecer hidrelétricas nas áreas mais produtivas do País.
A torre é uma das 16 instaladas na Amazônia como parte do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), um projeto internacional que há dez anos estuda as interações entre a biologia e o clima. Instrumentos científicos no solo e acoplados à estrutura metálica registram os sinais vitais da floresta: produção de vapor, radiação, variações de temperatura, gás carbônico que entra e sai.
Na baixa atmosfera, a umidade que transpira da floresta vai desaguar em um “rio voador” que flui do Atlântico e entra no País pela costa do Pará, carregado de água evaporada do oceano. Ao passar por cima da Amazônia, os vapores oceânico e da floresta se misturam, formando uma gigantesca carga de ar úmido. Cerca de metade, segundo os cientistas, vai virar chuva na própria região e metade será carregada para longe. Ao “bater” nos Andes, a corrente se volta para o sul e passa a fluir em direo à Bacia do Prata, passando sobre várias regiões do Brasil.
“Quando você toma um copo d’água em São Paulo, está bebendo água da Amazônia também”, diz o meteorologista Gilvan Sampaio, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Com o avanço do desmatamento, esse fluxo corre o risco de ser quebrado. Quanto menos floresta, menor é a transpiração e menos água é devolvida à atmosfera, prejudicando a formação de chuvas. Um trabalho publicado por Sampaio e outros pesquisadores mostra que uma redução de 40% na cobertura florestal do leste da Amazônia já seria suficiente para desencadear mudanças climáticas severas na região, com aumento de temperatura e redução dos índices pluviométricos.
“A Amazônia vai ficar mais seca, com certeza”, decreta o especialista José Marengo, meteorologista do Inpe. Quem vive fora da Amazônia também teria muito a perder. “Estudos indicam que a perda da floresta pode mudar os níveis de precipitação em vastas áreas do território da América do Sul, como o Centro-Sul, Sudeste e Sul do Brasil”, afirma Marengo, num relatório que escreveu sobre o tema para o projeto Brasil das Águas. “Pensando em cenários de mudança de clima, com o desmatamento aumentando, conseqüências diretas sobre as estações chuvosas são esperadas, embora ainda não seja possível quantificar essa mudança.”
Pode parecer paradoxal, mas é possível que, mesmo sem o vapor d’água da floresta, a quantidade de chuvas no Sul aumente com o desmatamento. O volume de vapor que entra do oceano pelo rio voador é enorme: 600 mil metros cúbicos de água por segundo, três vezes maior do que a vazão do Rio Amazonas, segundo o pesquisador Antonio Manzi, do Inpa. Sem a floresta para consumir parte desse fluxo, e com o agravamento das mudanças climáticas, o vapor do oceano poderá passar como um trem expresso pela Amazônia, chegando com muito mais força ao seu destino final. Em vez de funcionar como um sistema de irrigação, o rio voador se transformaria numa seqüência de enxurradas, com curtos eventos de chuva forte seguidos por longos períodos de estiagem – um cenário péssimo para a agricultura.
“O ar flui mais rápido sem a floresta e não dá tempo de chover. Só vai chover no final”, explica Marengo. “O Sul terá mais chuva, mas ela será mal distribuída. O efeito maior será de falta de água.”
Para alguns pesquisadores, o rio voador corre o risco de secar totalmente, transformando grandes áreas do Sudeste e do Sul em desertos. “Você tira a floresta e o continente inteiro pode virar uma savana”, sentencia o ecólogo Antonio Nobre, do Inpa. Ele se apóia no trabalho de uma dupla de físicos russos, segundo o qual a transpiração da floresta funciona como uma válvula de sucção que puxa o ar úmido do oceano para dentro do continente. O desmatamento enfraqueceria esse mecanismo, podendo provocar, até mesmo, uma mudança de direção dos ventos, que passariam a soprar umidade para fora do continente.
“Embora haja indicação de que o impacto hidrológico do desmatamento seria menor que o imaginado, ocorre o oposto”, afirma o biólogo Philip Fearnside, também do Inpa. A contribuição da Amazônia para as chuvas do resto do País, segundo ele, pode ser maior do que se imagina. “Podemos não saber a quantidade exata, mas é muito.”

Fonte: Herton Escobar (O Estado de São Paulo)

O maior bioma do mundo


Arara Vermelha, na floresta do Instituto Floresta Viva, no Amazonas. Foto: Dida Sampaio/AE


As escamas do peix
e Pirarucu são utilizadas como adereços de roupas e acessórios por estilistas. Foto: Dida Sampaio/AE

Pássaro na reserva de desenvolvimentos sustentável Cujubim Foto: Dida Sampaio/AE


O ribeirinho João Teofolo exibe couro de Onça Pintada caçada por ele na Reserva Cujubim. Foto: Dida Sampaio/AE

Peixe Tracajá, encontrado na beira do Rio Jutaí. Foto: Dida Sampaio/AE

Jacaré do rio Jutaí, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Cujubim. Foto: Dida Sampaio/AE


Macaco na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Cujubim. Foto: Dida Sampaio/AE

Macaco Uacari vermelho, na floresta do Instituto Floresta Viva, no Amazonas. Foto: Dida Sampaio/AE

Nenhum outro país chega perto do Brasil em número de espécies

MANAUS - O Brasil abriga 13% das espécies da fauna e da flora existentes em todo o mundo – e a maior parte delas está na Amazônia. A floresta de 4,2 milhões de quilômetros quadrados é habitada por centenas de milhares de espécies de plantas, animais, fungos, bactérias. Um refúgio de suas matas ou um braço de seus rios pode conter mais espécies do que continentes inteiros.
A Amazônia brasileira tem 1.200 espécies conhecidas de aves. Só num raio de 150 km de Manaus é possível encontrar 800 delas, mais do que nos Estados Unidos e Canadá juntos (que têm 700). E ocorre o mesmo com os peixes: o número de espécies descritas na Amazônia (mais de 2 mil) é dez vezes maior que o de toda a Europa – apenas 200. Só no Lago Catalão, entre os Rios Negro e Solimões, em frente a Manaus, há 300 espécies conhecidas, segundo os especialistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
As estimativas dos cientistas são de que só 10% das espécies existentes na Amazônia brasileira sejam conhecidas. Talvez menos. Ainda assim, na escala amazônica, 10% já englobam números espantosos. Só de anfíbios são 250 espécies catalogadas, ante as 81 da Europa. Os mamíferos são 311, com mais de 70 espécies de macacos e 122 de morcegos. As abelhas são 3 mil; borboletas e lagartas, 1.800. Em uma única árvore da Amazônia já foram encontradas 95 espécies de formigas – 10 a menos do que em toda a Alemanha.
Mas há uma imensidão ainda a ser desbravada. E não é preciso ir longe para encontrar novas espécies: mesmo no Rio Amazonas, o mais explorado da região, as descobertas são rotineiras – em 2005, foi identificado um exemplar de piraíba, que pode chegar as mais de 2 metros. Levantamentos recentes feitos com redes de arrasto revelaram um universo de peixes elétricos e outros animais exóticos que vivem nas regiões mais profundas do rio, em áreas de escuridão total. “Mesmo o que pensamos ser muito conhecido é pouco conhecido. É impressionante”, diz o especialista Jansen Zuanon, do Inpa. A média para o Brasil é de uma nova espécie de peixe de água doce descrita por semana.
No Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, 70 novas espécies foram descritas nos últimos seis anos, incluindo vespas, aranhas, peixes, macacos, cobras e plantas. “Se tivéssemos mais pesquisadores, certamente descobriríamos muito mais”, diz a diretora do museu, Ima Vieira.
A maior parte da Amazônia ainda é território inexplorado pela ciência. Estima-se que até 70% das coletas feitas sobre biodiversidade na região estão restritas aos entornos de Manaus e Belém – onde estão o Inpa, o Museu Goeldi e as principais universidades da região. Diante do tamanho e da heterogeneidade da Amazônia, é o mesmo que observar a região por um buraco de fechadura. Faltam respostas para perguntas básicas: quantas espécies existem na região? Como elas estão distribuídas? Qual o papel de cada uma na natureza? Ninguém sabe dizer ao certo. A maior biodiversidade do planeta é também a mais desconhecida.
Organismos menores e altamente diversos, como os invertebrados (que constituem 95% das espécies animais do planeta), não têm nem estimativas. “Não chamo isso nem de lacuna; é uma cratera gigantesca de informação”, diz o ecólogo Thomas Lewinsohn, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador do maior levantamento sobre biodiversidade já feito no Brasil. E completa: “Nem é incapacidade dos cientistas, é um buraco negro mesmo. Não dá nem para chutar números.”
Não se trata apenas de saciar uma curiosidade científica. A falta de informações é uma ameaça direta à conservação da biodiversidade e dos serviços ambientais prestados por ela. “Como é que vamos entender o funcionamento de um ecossistema se nem conhecemos as espécies que fazem parte dele?”, pergunta o zoólogo Miguel Trefaut Rodrigues, da Universidade de São Paulo (USP).
O planejamento de obras e a definição de áreas para conservação, por exemplo, dependem diretamente desse conhecimento. “Produzimos muitas informações sobre a Amazônia, mas elas não estão organizadas de uma forma prática que possa nos dar respostas rápidas para perguntas importantes”, resume José Maria Cardoso da Silva, da ONG Conservação Internacional (CI).
A última Avaliação do Estado do Conhecimento da Biodiversidade Brasileira calculou o número de espécies conhecidas no Brasil entre 168 mil e 212 mil – uma diferença de 44 mil. Prever o número real de espécies (incluindo as desconhecidas) é ainda mais difícil. Lewinsohn estima um total entre 1,4 milhão e 2,4 milhões de espécies. Baseando-se no ritmo atual, com uma média de 700 novas espécies descritas por ano, serão necessários 1.200 anos até que seja conhecida toda a biodiversidade brasileira – incluindo a da Amazônia.
A lista oficial da fauna ameaçada do Brasil inclui 58 espécies da Amazônia – 9% do total. É pouco, se for levado em conta que muitas espécies provavelmente estão ameaçadas ou já foram extintas sem que os cientistas tenham tido chance de conhecê-las. “Certamente já perdemos muito mais do que conseguimos avaliar”, lamenta o ornitólogo Alexandre Aleixo, do Museu Goeldi.

Fonte: Herton Escobar (O Estado de São Paulo)

O maior rio do mundo


O barco Tanaka, que sai de São Gabriel da Cachoeira para Manaus pelo Rio Negro. Foto: Jonne Roriz/AE


A mais longa viagem fluvial da Terra leva 6.850 km


MANAUS - Quando estabeleceram, em junho deste ano, que o Amazonas é o rio mais longo do mundo, com base em expedição, marcações de GPS e imagens de satélites, os cientistas brasileiros e peruanos reafirmaram uma verdade que os índios andinos conheciam há mais de cinco séculos: seu verdadeiro formador é o Rio Ucayali, e não o Tunguragua. Essa constatação o torna mais comprido que o Nilo. Mas ela já estava escondida, durante todos esses séculos, nos nomes desses dois rios.
Numa impressionante pesquisa apresentada em 1889, o jurista João Mendes de Almeida mostrou que Tunguragua vem do tupi Tange-yrê-áquá, que significa “corre apressadamente atrás de outro”. E Ucayali é , na verdade, a corruptela de Oquâ-uâ-ré, o que “passa veloz e destramente adiante, deixando outro atrás”. Isso porque, apesar de nascer mais ao sul que o Tunguragua, o Ucayali “corre mais rápido” e se encontra com ele. Também a nascente de ambos já estava definida no século 18: é o Lago Lauricocha (Yâ-ri-qu’ógca, ou “tramado de fendas”, por sua origem vulcânica).
Para quem estranha essas explicações em tupi no berço do Império Inca, João Mendes faz mais revelações: o nome Peru vem de Pé-rú, que em tupi significa “tem caminho”, referência à estrada que cortava os Andes – que, por sua vez, vem de A’-ndi, ou “muitos picos”. O “povo tupi” foi a “primeira geração” das Américas, arremata o estudioso, depois de outras referências etimológicas que alcançam até o México.
Os nomes – ou a ignorância sobre eles – tiveram implicações geopolíticas que encurtaram o Rio Amazonas. Os portugueses não permitiram que o Rio Marañon, do qual o Tunguragua é afluente, e que desce estrepitosamente os Andes, chegasse com esse nome ao Brasil, por acreditar na lenda segundo a qual ele provinha de um suposto capitão espanhol que o teria descoberto. Na verdade, seu nome vem de Maran-nhã, em tupi o que “corre despropositadamente”.
Todas essas confusões decorrem do quanto o Amazonas é um rio improvável. Sua nascente está muito perto do Pacífico, a 5.300 metros de altitude, num pico seco e frio. Ali, ele começa como uma lâmina d’água, que em nada lembra o Parà-nà-guaçú, “semelhante ao mar grande”.
Antes de escolher seu caminho, ele hesita. Corre em geral na direção sul-norte, e chega a desenhar uma curva ao nor-noroeste, como se pretendesse fazer o caminho mais curto. Depois, num estreito chamado de Pongo de Manseriche, vira-se bruscamente para o leste. E lança-se na mais longa viagem de um rio na Terra: pelo menos 6.850 quilômetros (o Nilo tem 6.670), até desaguar do outro lado do continente.
Na verdade, o Amazonas já nasce violento, ao descer do Altiplano peruano, trocando de nome seguidamente. Quando chega à planície, muda de ritmo. De Benjamin Constant, na fronteira com o Peru, até o Atlântico, o rio desce apenas 65 metros, na sua travessia de 3.220 km do território brasileiro – o que dá um gradiente de 20 milímetros por quilômetro. Daí que sua velocidade média seja só de 2,5 km/h.
No caminho, o rio e seus mais de 7 mil afluentes tornam-se a comida, a estrada, a morada, o modo de vida de milhões de pessoas que habitam a sua bacia de 5.846.100 km², a mais vasta do mundo.
A Colômbia chama precipitadamente de Rio Amazonas o que, ao entrar no Brasil, torna-se apenas um braço do Amazonas brasileiro: o Solimões. Só a 1.620 km dali – 10 km depois de Manaus – é que o Solimões ganha o nome de Amazonas, ao se encontrar com o Rio Negro.
Não sem relutância. A água fria e esbranquiçada do moroso Solimões, repleta de sedimentos de rochas que seus afluentes trouxeram dos Andes, leva 6 km para começar a se misturar à do Negro, com sua cor de chá preto por causa dos ácidos da decomposição de material orgânico da floresta que ele e seus afluentes inundam, quente, veloz e bem mais raso.
De Manaus a Belém, o Amazonas se converte na mais importante hidrovia do Brasil, com 62% da carga transportada em rios no País. Por seus 1.650 km escoam os produtos da Zona Franca e chegam os seus componentes, os grãos do Rio Madeira e a bauxita do Trombetas, além do abastecimento de toda a região. Com 30 a 40 metros de profundidade, é navegável todo o ano, até mesmo por navios grandes.
De uma margem não se vê a outra. Com exceção do estuário, seu trecho mais largo fica perto da boca do Rio Xingu, com 13 km. Mas, durante as cheias, quando sobe até 13 metros, sua largura pode superar 50 km. A vazão média do Amazonas é de 170 mil m³ por segundo na altura de Óbidos (PA), onde atravessa sua mais estreita garganta, com 2.600 metros de largura. Abaixo dessa cidade, ele ainda recebe a água de afluentes importantes, como o Tapajós, o Xingu, o Pará e o Jari. Ainda assim, essa descarga é dez vezes a do Mississippi, o maior rio dos EUA.
Em 1500, o navegador espanhol Vicente Pinzón, considerado o seu descobridor, chamou-o de Mar Dulce, antes de seu compatriota Francisco Orellana associá-lo ao mito grego das amazonas.
Ao chegar ao Atlântico, o Rio Amazonas enfrenta-o como se acreditasse ser mesmo um “mar grande”, abrindo-se num estuário de 320 km de largura. Lança no oceano o equivalente a 11% de toda a massa de águas continentais do mundo. Suas águas doces e barrentas empurram violentamente as do mar por até 200 km, e esse encontro tumultuado forma vagalhões de até 5 metros de altura. Um terrível espetáculo, com um doce nome: pororoca, que quer dizer, simplesmente, “estrondo”.


Fonte: Lourival Sant’Anna (O Estado de São Paulo)

A maior floresta do mundo


São Gabriel da Cachoeira, cidade onde cerca de 90% da população é descendente de índios. Foto: Jonne Roriz/AE
Beleza e destruição cobrem metade do Brasil

MANAUS - A Amazônia tem escala e dimensão singulares e superlativas. É a maior floresta tropical do mundo e maior concentração da biodiversidade do planeta. Sua cobertura verde é uma embalagem viva sob a qual se esconde um universo de animais, plantas, micróbios, genes, climas, águas, índios, beleza e destruição. Cobre metade do território nacional. Não seria exagero dizer que o Brasil é o país da Amazônia, muito mais do que a Amazônia é a floresta do Brasil.
Se somadas as áreas de quase todos os países da Europa (excluindo os da antiga União Soviética), eles caberiam com folga dentro da superfície da Amazônia brasileira. O bioma inteiro tem 6,6 milhões de quilômetros quadrados, espalhados por nove países sul-americanos. O Brasil é dono de quase 65% disso, com mais de 4 milhões de km² de floresta. Só o Estado do Amazonas, com 1,6 milhão de km², tem quase cinco vezes a área da Alemanha ou três vezes o território da França, e é maior do que qualquer um dos outros países amazônicos – Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana e Suriname, fora a Guiana Francesa, que é uma possessão.
Referências à Amazônia brasileira aparecem de duas maneiras distintas. A primeira é o bioma Amazônia, uma definição ecológica que considera apenas as áreas de formação florestal e seus ecossistemas associados; tem 4,2 milhões de km², ou 50% do território nacional. A outra, chamada Amazônia Legal, é uma região política, que abrange os sete Estados do Norte (Amazonas, Pará, Roraima, Amapá, Acre, Rondônia e Tocantins), mais Mato Grosso e metade do Maranhão. Tem pouco mais de 5 milhões de km² e foi definida originalmente como área de jurisdição da antiga Sudam, a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, extinta em 2001 e recriada neste ano. Além de áreas de floresta, inclui cerca de 730 mil km² de cerrado e outras formações naturais não florestais. Os 100 mil km² que sobram são as superfícies ocupadas pelos rios – um universo aquático quase do tamanho de Pernambuco. Normalmente, faz-se referência à Amazônia Legal quando se trata de dados econômicos; as estatísticas sobre desmatamento – ou desflorestamento – dizem respeito apenas às áreas de floresta. Desmatamentos em áreas de cerrado não são computados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Dentro disso tudo está a maior biodiversidade da Terra. São centenas de milhares de espécies de plantas e animais – ninguém sabe ao certo quantas –, forçadas a conviver com o predador mais inteligente e perigoso do reino animal, o homem. Segundo a última contagem do IBGE, 23,5 milhões de pessoas vivem na Amazônia. São apenas 13% da população brasileira, mas o suficiente para fazer um estrago de proporções planetárias.
O desflorestamento já consumiu 17% da Amazônia – 700 mil km², área equivalente a Minas Gerais, Rio e Espírito Santo somados. A maior parte foi transformada em madeira, carvão, carne e soja para saciar a demanda de mercados nacionais e internacionais. Mesmo com a dolorosa destruição provocada pelo homem, a Amazônia brasileira ainda é a maior extensão contínua de floresta tropical do mundo. A selva do Congo, segunda colocada, fica muito atrás, tanto em extensão (1,7 milhão de km²) quanto em número de espécies.
Um dos erros que se cometem é tratar a Amazônia como um “tapete verde” homogêneo. O que parece ser uma única floresta sem fim é, na verdade, um grande mosaico de paisagens e ecossistemas altamente diferenciados, compostos de planaltos, depressões, montanhas, terrenos alagados e de terra firme, rios de todos os tamanhos, águas de todas as cores, ácidas e alcalinas, florestas úmidas e secas, savanas, pântanos e manguezais, cada um com seu conjunto próprio de espécies e interações biológicas. “Já andei por muitos lugares na Amazônia e nunca vi duas localidades iguais”, diz a ecóloga Albertina Lima, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). “Cada lugar é diferente, cada um tem suas peculiaridades.”
No período das cheias, quando os rios invadem a floresta, a Amazônia tem mais áreas alagadas que o Pantanal. Tem também o maior conjunto de manguezais do mundo, com 14 mil km², no litoral de Pará e Maranhão. No interior da floresta se abrem grandes manchas de savana, idênticas a uma paisagem africana. A maior montanha do Brasil, o Pico da Neblina, com 2.993 metros, também está lá.
A idéia do tapete verde, além de equivocada, pode colocar em risco a preservação da biodiversidade, sugerindo que uma área é igual a outra, e que um desmatamento em Mato Grosso pode ser compensado com uma unidade de conservação no Amapá. Não pode. “Não faz sentido dizer que vamos preservar 10% ou 20% da Amazônia. Existem várias Amazônias, e todas merecem ser preservadas”, diz o biólogo José Maria Cardoso da Silva, vice-presidente de Ciência da ONG Conservação Internacional (CI).
Muitos cientistas trabalham com o conceito de grandes áreas de endemismo. São regiões separadas pelos grandes rios amazônicos, que funcionam como muralhas aquáticas, restringindo o fluxo de plantas e animais e, com isso, favorecendo a diferenciação geográfica de espécies. Por esse modelo, a Amazônia é um arquipélago de oito gigantescas ilhas fluviais, tão biologicamente distintas quanto os países europeus que cabem dentro delas. Só a área de endemismo Tapajós (entre os Rios Tapajós e Xingu), com 650 mil km², é maior do que toda a região Sul do Brasil (576 mil km²).
Outro modelo – usado pelo WWF e pelo Ibama – divide o bioma em 23 ecorregiões, agrupadas com base em características comuns de ecologia, geologia e clima.

Fonte: Herton Escobar (O Estado de São Paulo)

Prece de amazonense em São Paulo



Poema inspirado em Carlos Drummond de Andrade
Milton Hatoum

Espírito do Amazonas, me ilumina, e sobre o caos desta metrópole, conserva em mim ao menos um fio do que fui na minha infância. Não quero ser pássaro em céu de cinzas nem amargar noites de medo nas marginais de um rio que não renasce. O outro rio, sereno e violento, é pátria imaginária, paraíso atrofiado pelo tempo. Amazonas: Tua ânsia de infinito ainda perdura? Ou perdi precocemente toda esperança? Os que te queimam, impunes, têm olhos de cobre, mãos pesadas de ganância. Ilhas seres rios florestas: o céu projeta em mapas sombrios manchas da natureza calcinada. Tento abraçar a imagem fugidia de um barco à deriva no mormaço com os mitos que a linguagem inventa. Espírito amazonense, tímido talvez, e desconfiado para sempre, não me fujas em São Paulo, nem me deixes à mercê dos pesadelos que incendeiam o mundo. Se o Brasil te conhecesse antes do fim que se aproxima, salvaria tua beleza? Teus seres desencantados? Entenderia a ciência tua infinita riqueza? Abre a janela de um barco ante meus olhos, e que ao teu profundo rio conduza a memória de línguas estranhas e tantas histórias ocultadas: Amazonas.
São Paulo, Manaus, setembro de 2007

Fonte: Jornal O Estado de São Paulo